O que eu não tive tempo de dizer

Caro leitor,
    O ano é 2015, e histórias como essa que você está prestes a ler, estão se tornando cada vez mais comuns, o que é lastimável. Em um mundo onde as pessoas se dizem tão evoluídas, nunca foram tão primitivas.
    Me deixa admirada – não no bom sentido da palavra – o fato de ainda sermos tão escravos das nossas próprias vontades e medos, como ainda deixamos que as nossas emoções guiem as nossas ações. Nos últimos anos, eu acabei desenvolvendo uma teoria, algo que ajudaria não só a mim, mas todo mundo a ser mais feliz. Diariamente, milhares de pessoas desistem das suas vidas por medo do futuro, de dores que nem sabem se vão sentir; muitas pessoas desistem por se importarem demais com o impacto da sua existência na vida de outras pessoas. Muitos querem mudar o mundo, e ao verem que isso não é possível, acabam desistindo. Ou quando não desistem de tudo, vivem uma vida extremamente infeliz.

    O nome dela é Helena, tem 17 anos e nasceu em uma família extremamente conservadora, daquelas bem arcaicas onde não é permitido sair dos padrões ou quebrar regras. Que em pleno século XXI ainda não aceitam as diferenças que existem entre as pessoas. E Helena enfrenta diariamente esse impasse, entre querer agradar a sua família e querer ser ela mesma, mas sempre teve medo da reprovação da família, principalmente do pai. Lorenzo sempre foi um homem extremamente machista, a favor da ideia de que mulher não pode trabalhar porque tem que ficar em casa cuidando dos filhos, e desde sempre educou sua filha do mesmo jeito. Nunca foi um pai muito amoroso, do tipo que chega em casa e abraça os filhos, mas também nunca deixou faltar nada, sempre cumpriu com suas obrigações como pai, e Helena já estava acostumada com isso, Lorenzo era o único exemplo que ela tinha, pra ela era normal viver assim, não tinha coragem de discordar do seu pai então sempre acreditou em tudo o que ele dizia, foi induzida a aceitar o preconceito do próprio pai e a viver isso, já estava conformada com a ideia de que se tornaria uma mulher como a sua mãe, María, que sempre viveu em função do casamento e nunca trabalhou fora de casa, era uma verdadeira escrava do marido. Sua rotina sempre foi a mesma: cuidar da casa, criar a filha e servir o marido. Não tinha voz dentro de casa e assim como a filha, sempre foi ensinada a seguir as regras.
    Mas depois que Lorenzo morreu, Helena teve a oportunidade de conhecer melhor o mundo ao seu redor. Ela sempre teve o sonho de fazer algo diferente, ser lembrada por fazer algo que mudou a vida das pessoas, sonhava com algo grandioso mas ainda não sabia o quê.
    Helena nunca teve muitos amigos na escola, nunca foi muito sociável, porque sempre viveu na bolha criada pelos pais. Ela não saía de casa a não ser para ir a escola, nunca tinha namorado antes, a sua visão de mundo era formada à partir da visão dos pais e de sua única amiga, Mércia. Elas tinham a mesma idade, mas Helena era muito mais ingênua, o que não quer dizer que já não tinha uma opinião formada sobre muita coisa. Enquanto vivo, Lorenzo fazia questão de expressar todos os seus ideais para a filha, a fim de fazê-la uma cópia de si, a menina cresceu racista, homofóbica e machista.
    Mas Mércia, era muito diferente, e se não fossem as circunstâncias Helena acharia um absurdo  certas coisas que ela diz. As duas eram extremamente diferentes, Helena totalmente conservadora, a Mércia totalmente liberal. Mas tais diferenças fizeram com que Helena olhasse a amiga com outros olhos. Ela nunca tinha se apaixonado antes, portanto não sabia como era, não sabia o motivo de querer tanto estar sempre perto dela. Era tudo muito novo. Aquele sentimento ia contra tudo o que Helena acreditava – bizarro, eu sei.
    Mércia tinha um jeito único de agir e pensar que deixava Helena intrigada. Ela levava a vida de uma forma que Helena achava encantadora, não seguia regras. E Helena acabou se apaixonando por ela, mas não foi uma opção, simplesmente aconteceu e ela não sabia o que fazer com esse sentimento. Tinha em mente que isso era muito errado e que não deveria estar acontecendo, porque na mente dela aquilo não era normal, ela carregava em si a ideia de que se sentir atraída por um igual era uma aberração da natureza, o pai dela dizia isso. Helena cresceu julgando pessoas assim, mas no fundo ela sabia que não era uma opção, se deu conta de que ela  sempre teve esse sentimento por Mércia, mas tentou com todas as suas forças esconder. Ela tinha medo desse sentimento, medo de estar enganada, de tomar alguma decisão e se arrepender no futuro, e tinha medo do que a mãe iria achar de tudo isso. Então tentou esconder esse sentimento o máximo que pôde, ela sabia que era o mais sábio a se fazer, não podia ser tão difícil, era só continuar como elas já estavam que uma hora o sentimento iria desaparecer.
    Mas não era simples assim, parece que quanto mais ela tentava esconder, mais o sentimento crescia e mais ela queria demonstrar, queria saber se Mércia sentia o mesmo. Helena fantasiava com esse dia, em como seria estar com ela, beijá-la – seria a primeira vez, e ela sonhava com esse momento – Mas é errado, ela não podia fazer isso. O que as pessoas pensariam dela? O que sua mãe pensaria disso? Será que isso não é só uma fase? Esses questionamento a perseguiam. Era muito difícil ser racional nessas horas.
    Como as duas sempre foram muito amigas, elas conversavam muito e Mércia se sentia muito a vontade em contar coisas muito íntimas e pessoais para Helena, como suas experiências amorosas. Ela já tinha estado tanto com meninos como com meninas, e todas essas experiências ela compartilhava em detalhes com a amiga. Helena nunca conseguiu entender como era possível alguém se sentir igualmente atraído pelos dois sexos, mas Mércia faz questão de esclarecer isso para a amiga, ela sentia mais prazer quando estava com meninos e já tinha se apaixonado e namorado com um uma vez, e esse e todos os seus outros relacionamentos foram muito intensos e deixaram marcas que ela jamais esqueceria. Já com meninas era algo mais voltado ao prazer sexual, ela nunca tinha se apaixonado ou namorado com alguma, mas adorava a delicadeza e o carinho que rolava nessas relações. Mércia era a personificação de tudo que Helena era contra, mas era uma menina incrível e apaixonante, não tinha como simplesmente esquecer de tudo o que sentia e ainda ter que conviver com ela todos os dias e a cada dia se apaixonar mais ainda por aquele sorriso indescritível, aquele corpo, o toque e o jeito de levar a vida. Tudo nela era encantador e Helena não sabia como lidar com esse sentimento, mas tinha muito medo de falar sobre isso com a amiga e acabar estragando essa amizade, tinha medo de não ser correspondida.
    Mércia já tinha brincado algumas vezes sobre querer beijar a amiga, mas Helena nunca levou isso muito a sério porque a conhecia e sabia que poderia não passar apenas de uma brincadeira. Mas elas passaram a ser mais frequentes, Mércia passou a olhar para a amiga de outra forma – E Helena não  sabia o motivo dessa mudança tão repentina- passou a querer ficar próxima demais dela. Podia ser apenas coisa da cabeça de Helena, podia não ser nada mas era.
    Em um dia qualquer que não importa agora, as duas estavam na casa de Mércia fazendo um trabalho escolar ou qualquer outra coisa do tipo quando, inesperadamente e sem falar qualquer coisa antes, Mércia beija Helena – poderia descrever como foi, de como ela ficou após esse beijo e como ela ficou mais a mais apaixonada, mas isso realmente não tem importância para a conclusão do meu raciocínio.
    Depois do ocorrido, as duas começaram a  se encontrar fora da escola, mas não estavam namorando – não estavam mesmo – a forma mais correta de definir a relação seria uma amizade bem íntima, até mesmo porque Mércia estava ficando com outras pessoas nesse período, mas as duas estavam mais próximas do que nunca, Helena estava apaixonada mas sabia que aquilo era inviável e naquele momento estava satisfeita com a relação que estavam tendo. Elas conversavam muito sobre tudo, Helena falava pra ela sobre o seu sonho de fazer algo diferente, fazer algo que pudesse mudar a vida de alguém, e descobriu que tinha talento para escrever. Era empolgante para as duas toda a situação, estavam focadas em fazer isso dar certo, focadas em colocar o nome das duas em um papel para alguém talvez ler e talvez gostar, sabiam que havia uma grande possibilidade de dar errado mas Helena queria fazer aquilo, queria escrever sobre a vida dela, das dificuldades que teve até chegar àquele momento de estar apaixonada por uma garota e estarem juntas mesmo que nem tanto, não tinha mais como esconder e ela ia escrever sobre aquilo. Mas queria dar um passo importante, queria contar para a mãe quem ela era, mesmo que não tivessem uma relação tão boa, María era a única família que ela tinha.
    Ela chegou em casa e a mãe estava na cozinha, como sempre, fazendo o jantar. Helena estava convicta de sua decisão, mas naquele momento ela não tinha mais tanta certeza, estava com medo, muito medo, María podia falar qualquer coisa pra ela, podia dar-lhe um abraço ou então expulsá-la de casa, e ela não tinha como adivinhar o que estava prestes a acontecer.
    Chegou, colocou a bolsa em cima da mesa e foi cumprimentar a mãe – imagino que tenha sido assim. O medo estava visível em seus olhos e María percebeu. Com aquela voz lerda perguntou o que a filha tinha e sem que pudesse pensar antes de agir, Helena pediu que a mãe sentasse à mesa porque tinha algo muito importante a dizer. Ela arrastou a cadeira pelo piso velho em uma vagareza impressionante e sentou-se, e assim faz Helena também, sentou em uma cadeira onde pudesse ficar de frente para a mãe.
    Sua respiração estava ofegante e o coração ansioso, as unhas estavam quase à ponto de fazer um furo na mesa, mas ignorando tudo isso, ela olhou nos olhos da mãe e confessou ali seus pecados e sentimentos mais profundos. Foi tudo rápido demais e quando deu por si, María estava olhando para ela com um olhar de tristeza que Helena nunca mais tinha visto desde a morte do pai. Ela não gritou, não bateu na filha, não chorou. Apenas olhou em seus olhos e disse “Seu pai sentiria nojo de você”.
    Helena esperava qualquer coisa e mãe, menos isso. E ali naquele momento, sentada no chão do banheiro com a vida jorrando de seus pulsos ela só queria acabar logo com aquilo. Queria acabar com aquela ilusão que ela tinha criado de que poderia ter sido feliz, mas ninguém consegue ser feliz sem antes passar pela dor. Alguns escolhem enfrentar, mas ela apenas desistiu. Desistiu e ter seu nome em um livro, desistiu de mudar a vida de alguém, desistiu dos seus sonhos. Em um momento de puro descontentamento ela se esqueceu de todas as coisas que eram motivo para mantê-la viva e se prendeu a algo que não valia a sua vida.

    Talvez a indiferença seja a solução para esses problemas. Talvez a apatia teria resolvido os problemas de Helena e ela ainda estaria viva para lutar pela sua vida caso não se importasse com nada e nem ninguém. Talvez ela podia ter evitado todo esse sofrimento, caso tivesse aceitado que simplesmente não vale a pena, que um dia toda essa dor iria passar e que ela seria apenas mais uma dentre as milhões de pessoas que sentem o mesmo.
    Mas talvez, ser tão apática a ponto de não ser capaz de sentir, a tornaria menos humana, menos capaz de amar. E a humanidade é algo que não estamos preparados para abrir mão, não podemos simplesmente nos tornar robôs sem sentimentos apenas por medo, é muita covardia. E talvez seja por isso que eu não consigo convencer as pessoas da minha teoria, porque assim como Helena, eu não encontrei motivos suficientes para permanecer viva. E talvez a vida seja isso, a constante busca por algo que nos faça acreditar que vale a pena viver; ou apenas a luta para nos fazer perceber que isso pode estar onde menos esperamos. Que as pequenas alegrias da vida já podem ser suficiente. Que não precisamos mudar o mundo ou ter os nossos nomes em um livro para sermos alguém no mundo, talvez mudar a vida de apenas uma pessoa já seja o suficiente para a nossa vida ter valido a pena. Mas infelizmente ela não sabia disso. Queria poder ter dito isso pra ela a tempo. Mas espero que a nossa história tenha te ajudado de alguma forma, e espero que Helena, mesmo depois de morta possa mudar a vida de uma pessoa.
       
                                      Com carinho, Mércia.

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